não me exijas glórias
que ainda transpiro
os ais
dos feridos nas batalhas
não me exijas glórias
que eu sou o soldado desconhecido
da humanidade
as honras cabem aos generais
a minha glória
é tudo o que padeço
e que sofri
os meus sorrisos
tudo o que chorei
nem sorrisos nem glória
apenas um rosto duro
de quem constrói a estrada
por que há-de caminhar
pedra após pedra
em terrreno difícil
um rosto triste
pelo tanto esforço perdido
- o esforço dos tenazes que se cansam
à tarde
depois do trabalho
uma cabeça sem louros
porque não me encontro por ora
no catálogo das glória humanas
não me descobri na vida
e selvas desbravadas
escondem os caminhos
por que hei-de passar
mas hei-de encontrá-los
e segui-los
seja qual for o preço
então
num novo catálogo
mostrar-te-ei o meu rosto
coroado de ramos de palmeira
e terei para ti
os sorrisos que me pedes.
Agostinho Neto
caíram todos na armadilha
dos homens postados
à esquina
e de repente
no bairro acabou o baile
e as faces endureceram na noite
todos perguntaram por que foram presos
ninguém o sabe
e todos o sabem afinal
e ficou o silêncio
dum óbito sem gritos
que as mulheres agora choram
em corações alarmados
segredam místicas razões
da cidade iluminada
vêm gargalhadas
numa displicência cruel
para banalizar um acontecimento
quotidiano
vindo no silêncio da noite
do musseque Sambizanga
- um bairro de pretos!
Agostinho Neto
vendido
e transportado nas galeras
vergastado pelos homens
linchado nas grandes cidades
esbugalhado até ao último tostão
humilhado até ao pó
sempre sempre vencido
é forçado a obedecer
a deus e aos homens
perdeu-se
perdeu a pátria
e a noção de ser
reduzido a farrapo
macaquearam seus gestos e a sua alma
diferente
Velho farrapo
negro
perdido no tempo
e dividido no espaço!
ao passar de tanga
com o espírito bem escondido
no silêncio das frases còncavas
murmuram eles:
pobre negro!
E os poetas dizem que são seus irmãos.
Agostinho Neto
há esta angústia de ser humano
quando os répteis se entrincheiram no lodaçal
e os vermes se preparam para devorar uma linda criança
em indecorosa orgia de crueldade
e há esta alegria de ser humano
quando a manhã avança suave e forte
sobre a embriaguez sonora do cântico da terra
apavorando vermes e répteis
e entre a angústia e a alegria
um trilho imenso do Níger ao Cabo
onde marimbas e braços tambores e braços vozes e braços
harmonizam o cântico inaugural da nova África.
Agostinho Neto
Os campos verdes, longas serras, ternos lagos
Estendem-se harmoniosos na terra tranquila
Onde os olhos adormecem temores vagos
Acesos mornamente sob a dura argila,
Seca, como outrora mingou a doce esperança
Quente, imperecível como sempre o amor
Sacrificada, sangrada na lembrança
Do esforço bestial do látego opressor.
Em campos verdes, longas serras, ternos lagos
Refulgem ígneas chamas, rubros rugem mares
Cintilando de ódio, com sorrisos em mil afagos
São as vozes em coro na impaciência
Buscando paz, a vida em cansaços seculares
Nos lábios soprando uma palavra: independência!
Agostinho Neto
gostava de estar sentado
num banco do Kinaxixi
às seis horas de uma tarde muito quente
e ficar...
alguém viria
talvez sentar-se
sentar-se ao meu lado
e veria as faces negras da gente
a subir a calçada
vagarosamente
exprimindo ausência no kimbundo mestiço
das conversas
veria os passos fatigados
dos servos de pais também servos
buscando aqui amor ali glória
além uma embriaguez em cada álcool
nem felicidade nem ódio!
depois do sol posto
acenderiam as luzes e eu
iria sem rumo
a pensar que a nossa vida é simplesmente afinal
demasiado simples
para quem está cansado e precisa de marchar
Agostinho Neto (1922-1977)